sábado, 13 de abril de 2013

Prece da felicidade terrestre

O meu coração envelheceu à maneira dum véu: a usura dos dias tornou-o mais transparente e mais suave. A árida tensão, o triste oscilar da balança entre a carne e o espírito, a dor que vem a pós as vitórias da alma e o remorso que segue os triunfos dos corpo --- tudo isso não é mais do que a lembrança dum mau sonho. O meu espírito fez-se carne e esta tornou-se espírito. Sinto com o meu pensamento e penso com os meus sentidos. Não sou mais esta carne rebelde que desperta apetites contra o espírito, nem um espírito cioso que se separa da carne. Reuni as duas metades do meu ser: enfim, sou um homem!

Na embriaguez dos sentidos, encontrei a inocência, e o deslumbramento da felicidade ensinou-me a humildade. Não recusei nenhuma alegria, não repeli nenhum sofrimento --- contanto que fossem reais. Não conheço senão três inimigos --- três mentiras: o orgulho em que o eu devora a alma, a avareza que tudo quer para si e a vaidade, que se alimenta de fumo. Todos os meus amores e alegrias reuni num feixe único e jamais consentirei separar uma só espiga. Falam-me de opção e eu respondo: unidade.

Não sou cego e sei o que me espera. Ouço a moral estreita, a antiga prudência (a dos hábeis e não dos sábios, porque a loucura é para a verdadeira sabedoria o que o sal é para o mar --- como já Platão dizia) murmurar-me aos ouvidos: que farás tu, homem apanhado no visco dos prazeres efêmeros e rebelde à renúncia, quando soar a hora inevitável da prova? Que farei? --- sofrer em todo o meu ser. Não tendo sabido nem querido libertar-me, sentirei a libertação forçada: terei amanhã verdadeiros sofrimentos, como hoje tenho verdadeiras alegrias. Mas vós, cuja virtude não ousa tocar os frutos da terra, e não conheceis o agridoce sabor e o antegosto de morte e eternidade que deixam na alma, de que sereis privados quando a tempestade tiver devastado o pomar?

A vossa libertação dos bens presentes não será uma segurança contra os males futuros? O mesmo vento vos arrastará, uns e outros, mas eu, cujas raízes mergulharam na terra maternal e enganosa, sofrerei mais do que vós, que antecipadamente vos transformastes em folhas mortas. E encontrareis sempre um refúgio, um penhor, na estéril altivez da vossa virtude, que se basta a si própria, enquanto eu, separado de tudo o que amo, terei perdido todas os incentivos de viver, e o orgulho, a fidelidade a mim mesmo, não me servirão de nenhum auxílio. Então, só as mãos de Deus poderão curar a minha ferida, só o amor infinito poderá corresponder ao meu desespero.

Fonte:"O olhar que se esquiva à luz" - Livraria Figueirinhas - Porto, 1957